"Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho"
(Alberto Caeiro)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

As folhas que passam





São estas folhas, amarelas e vermelhas, que causam em mim essa sensação única: estas folhas me atravessam. E o mundo entra por dentro dos meus olhos, como que atraído por uma ânsia interior, anterior, um desejo de tudo que nasce do nada... que nasce do absolutamente nada. Me atravessam, expõem um tempo passado, uma intimidade secreta, causam essa vontade irrevogável de vomitar essa confusa realidade e esperar que isto seja belo. Me atravessam e me fazem com elas um só, uma estranha imagem traduzida pelas idéias de fim e começo. Levam ao vento a minha antiga e, diga-se de passagem, permanente, inveja dos artistas. Eles são atravessados todos os dias, em uma vida que, muito ao contrário da minha, foge completamente ao ordinário, e o resultado disso é que eles se tornam cada vez mais belos. As folhas me atravessam, e o que fica de mim é este eu completamente esburacado. Quem me vê, vê um esboço, ou o resto, de um eu, que antes inteiro, é  agora em frangalhos, razão destas folhas que continuam e continuam a me atravessar. De que material frágil é feita esta nossa estranha vida, que se cria e se desfaz em ciclos incontáveis. Me atravessam, me machucam, me acariciam e me moldam. Colocam em evidência a minha paixão incontrolável por tudo aquilo que é lindo. Quanto mais elas passam, quanto mais elas levam de mim, eu só posso me agarrar àqueles encontros mágicos com o lindo... Esta memória (Ah, esta sim!) é estampada em algum lugar que é a prova das folhas que passam. Não saberia explicar quão confusa é essa perspectiva, de ser atravessado, de sentir ao mesmo tempo a dor e o alívio de, assim, bem aos pouquinhos, perder um pedaço de si.

Me disciplino a não olhar pra trás... a não olhar, para não ver quantas folhas me atravessaram e que agora estão ali, por terra, à espera do momento em que serão varridas pra bem longe de um inverno que ainda demora e demora a chegar.


Ítalo

Bologna, Setembro de 2014

domingo, 17 de agosto de 2014

Faz de mim poeta



Faz de mim poeta
Peço à tarde que cai
Nessas palavras tantas
O tempo vai vai

E tão perdidas
E dizem de um céu azulzinho
E tão sentidas
E dizem do amarelo das manhãs, cedinho

Faz de mim poeta
Da lembrança ainda não perdida
Que espera na tarde preguiçosa
A poesia ainda não concebida

Se eu fosse poeta
Em rascunho, rabisco, papel amassado
Esqueceria uns tantos momentos
Faria novos, ainda que de um tempo passado

Mas é tarde e tão tarde
Bobagem pensar em se's
Quem dera em poesia inventar
Final para o que não pôde acabar

Ah se eu fosse poeta
Te daria uma carta, eu juro
De muito que eu pensei, de muito que é lindo
Mas o tempo passou, não sei quanto perduro

Faz de mim poeta
Eu pedi isso e muito mais
Mas não fui poeta
Nem muito mais

Ítalo
Bologna
Agosto 2014

domingo, 10 de agosto de 2014

Pequenas e passageiras paixões




Não me lembro o nome do poeta que disse
Que a vida é feita de pequenas e passageiras paixões

Como eu sou apaixonado pelo céu quando é de um azul assim
Ou pelos ipês de setembro que agora não os terei
Por qualquer poesia que deveria ter sido feita por mim
Por qualquer coisa que eu sei que não mais verei

Por um livro todo marcado comprado em um sebo
Pelo diário de criança apenas começado
Pela ideia de salvar o mundo que eu concebo
Pelo lembrança do beijo, o papel do bombom amassado

Apaixonado pela canção que eu não consigo cantar
Música que não consigo tocar, que eu não sei a letra
Pela paisagem linda e logo cedo eu tive que deixar
Por aquela sensação do começo, do daqui a pouco

Pequenas (lindas!) e passageiras paixões
Vê de que pobre matéria é feito
O combustível da vida

Agora, bem agora,
É só mais uma que se vai...
Com os olhos a procura, as mãos bem abertas
Eu me pergunto quantas mais não virão...

Ítalo
Agosto de 2014
Bologna

sexta-feira, 25 de julho de 2014

A cidade e o mar



Eu preciso da poesia desse lugar
O inverossímel caso de amor entre uma cidade e o mar

Amanhecer e ouvir o mar pela janela
Anoitecer e ter o mar na porta, à minha espera

Ver as flores do balcão
Quando no mar elas caem e vão

Aqui o mar é amigo e em sua sina
Vai salutando as pontes que surgem a cada esquina

Dos seus amores mascarados, segredos,
A água levou tudo, pra trás só histórias, enredos

E como a própria vida,
A cidade afunda de mansinho
Sem fazer caso, sem fazer alarde
Vai buscar o que todos buscamos
Um azul infinito pra descansar na eternidade

Ítalo

Veneza, Junho 2014

Imagem - arquivo pessoal

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Mundo deslocado

Um mundo d'água cai lá fora
Cá dentro, permaneço indiferente
Pois desde que você foi embora
Vejo o mundo deslocado, desabado, reticente...

Ítalo
Bologna, Julho 2014

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Poesia de Amanhã

O amanhã está tão cheio...

De poesias não acabadas
De paisagens ainda não admiradas
Músicas pra serem escritas
Cartas pra serem enviadas

O amanhã está tão cheio...

De cheiros, cores, testes
De sabores para experimentar
De histórias a serem recontadas
De jardins para plantar

Amanhã vou usar aquela boina
E vou deixar minha barba crescer
Amanhã não passo naquela vitrine
Sem comprar aquele doce que não deixo ver

Amanhã vou para Índia,
Vou ser monge durante um ano
Amanhã vou ser poeta marginal
Cantor de rua, vendedor de flores

Ah! Quem me dera que amanhã
Eu esquecesse que aprendi que falhar não é belo
Eu esquecesse as lições de que importante
É sempre o importante para os outros

Mas o amanhã é como um velho armário
Na despensa, no porão, no quartinho esquecido
Nele despenso inutilezas
Nele estoco riquezas
Para um tempo que não chega nunca

Nele envelhecem sonhos
Belezas e bobagens
E tanto do que eu mais desejo
Do que eu mais aprecio, e todas as paisagens
De um pensamento não vivido

Amanhã tem poesia
Só poesia, eu juro,
Amanhã será o dia
Da poesia de amanhã

Ítalo
Bologna, Maio 2015